Os neocons de Bush e o nepotismo

Quando Cuba anunciou que seria mesmo Raul Castro o sucessor de Fidel, o presidente George W. Bush avisou que os EUA “não aceitarão transição política de um irmão Castro para outro”. Mas  a família Bush, que já deu dois presidentes, um senador, dois governadores e um deputado, é péssimo exemplo em matéria de nepotismo, até pelos bons negócios dos Bush nos governos dos parentes (leia mais sobre isso no capítulo 5 do meu livro O Império Contra-Ataca – o da capa ao lado).

Ao mesmo tempo, os neoconservadores (ou simplesmente neocons) – no poder com Bush – cultuam o nepotismo e defendem os chamados “privilégios do berço”. Um “elogio do nepotismo” é o tema de um livro de Adam Bellow, In Praise of Nepotism (conheça-o AQUI) que se diz “uma história do empreendimento familiar, do rei Davi a George W. Bush”. Adam é filho de Saul Bellow, que conviveu com o grupo e se inspirou nele para escrever o romance Ravelstein. Mesmo assim, a extensão do nepotismo dos neocons é surpreendente.

Recentemente houve exemplo revelador numa revista de reflexão política deles – a Commentary, que teve certa influência no passado mas está reduzida a 34 mil exemplares, não passando de relíquia nostálgica da guerra fria, praticamente dedicada apenas aos interesses de Israel. Norman Podhoretz, diretor durante 35 anos, nomeou nomeou para sucedê-lo o filho John, cuja qualificação intelectual é no mínimo duvidosa.

Irã é o novo alvo deles

Curiosamente, entre os neocons é assim há muitos anos. “A família que reza unida, permanece unida”, pregava a “cruzada do rosário em família” do padre Peyton (ela existe até hoje: veja AQUI). Os casos específicos de Norman Podhoretz e Irving Kristol, os dois padrinhos-fundadores do movimento, são eloqüentes. Um sempre foi mais voltado para a política doméstica do país, o outro para a política externa (e a segurança de Israel).

Kristol, casado com a escritora Gertrude Himmelfarb, dirigiu inicialmente a célebre revista Encounter, que teve de fechar depois do escândalo sobre a verba secreta da CIA que a financiava. Em 1965 ele fundou The Public Interest, que sai apenas quatro vezes por ano. O filho do casal, William (Bill) Kristol, dirige hoje a Weekly Standard (que se anuncia como “a mais lida na Casa Branca”), bancada pelo magnata australiano Rupert Murdoch (leia AQUI, na revista do filho, a defesa que o pai faz do neoconservadorismo).

Bill Kristol, além disso, é presença permanente nos programas políticos da rede Fox News, também do império Murdoch, e desde janeiro de 2008 defende suas posições direitistas numa coluna semanal para o New York Times (leia AQUI a última) – como contra-peso aos liberais. Da mesma forma como fora o primeiro a pregar publicamente a invasão do Iraque, dias depois do 11 de setembro de 2001 (Saddam Hussein obviamente nada tivera a ver com o caso), agora sua obsessão é uma guerra contra o Irã.

As duas famílias e em especial os Kristol aparecem com destaque em The Cultural Cold War – The CIA and the World of Arts and Letters, o extraordinário livro de Frances Stonor Saunders que há quase 10 anos devassou a trama da espionagem americana para controlar círculos intelectuais sofisticados dos EUA e outras partes do mundo, distribuindo verbas oficiais e bancando publicações onerosas. 

Pais, mães, filhos e genros

No ramo Podhoretz, o velho Norman casou-se com a escritora Midge Decter. Seu filho John, que em janeiro deste ano assumiu o comando de Commentary (veja AQUI o último número), já tinha há algum tempo uma coluna no tablóide New York Post, do império Murdoch, que também lhe garantia espaço regular para escrever sobre cinema na Weekly Standard de Bill Kristol.

Segundo disse ao New York Times o escritor Jacob Heilbrunn, que em janeiro lançou um livro novo sobre os neocons (The Knew They Were Right: The Rise of the Neocons), John Podhoretz é encarado no grupo “como mero beneficiário da celebridade dos pais, nos moldes de George W. Bush”. Detalhe: os que fazem críticas a eles têm o cuidado de pedir para não serem identificados.

Outra alegre família que reza unida é a dos Kagan (Fred, Donald, Robert e Kimberly). Atualmente há muitos neocons em desgraça, devido aos efeitos da guerra e à desastrosa ocupação do Iraque. Casado com Rachel Decter, Elliott Abrams – genro de Norman Podhoretz e Midge Decter, além de cunhado de John – já tinha cumprido pena no escândalo Irã-Contras, quando esteve na trama do coronel Oliver North.

A ascensão e a decadência

O atual governo Bush reabilitou Abrams, instalando-o como especialista em América Latina no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, mas depois da ingerência americana no fracassado golpe da Venezuela (2002), ele parece preferir um perfil baixo. Entre os neocons conspícuos, já sairam de cena Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz, I. Lewis Libby (condenado por perjúrio), Richard Perle e Douglas Feith.

São desfalques conspícuos, que golpeiam o papel do grupo no governo Bush. Originalmente, os neocons destacaram-se no período macarthista ao dar força aos caçadores de bruxas. Ex-trotskistas, tornaram-se então liberais ferozmente anti-comunistas. Na política externa, seguiam a linha dura do senador Henry (Scoop) Jackson, democrata de direita; e na política interna, pregavam redução de gastos e do tamanho do Estado.

Rejeitados pelos republicanos de Gerald Ford e pelos democratas de Jimmy Carter, só começaram a chegar ao poder, timidamente, no governo Reagan (Perle, Abrams e Jeane Kirkpatrick entre outros). Depois Bush pai deu força ao grupo ao instalar Dick Cheney no Pentágono; e no governo do segundo Bush eles praticamente assaltaram o poder com seu Projeto do Novo Século Americano, que se tornou a nova Estratégia de Segurança Nacional do país (conheça sua íntegra AQUI, em PDF). Agora estão claramente em declínio.

Published in: on junho 13, 2008 at 6:17 pm  Comments (1)  

Cena americana no tempo dos “hippies”

 Quem não se lembra de Easy Rider? Nesse filme de 1969, cujo título no Brasil  foi Sem Destino, uma dupla de hippies sujos e incômodos (Peter Fonda e  Dennis Hopper, aos quais juntou-se depois Jack Nicholson), cavalgando  motocicletas e fumando maconha, é eliminada por cidadãos normais de uma  cidadezinha qualquer. Parecia tão insólito que, ajudado pela trilha sonora, bateu  recordes de bilheteria e fez escola em Hollywood. Hoje sabemos porque:  o  clima ali retratado refletia uma realidade vivida no país.

A minúscula cidade de Nederland, no Colorado, foi palco no verão de 1971 de crime parecido, impune por mais de um quarto de século. A vítima: um hippie sujo acampado nos arredores. O assassino: o xerife adjunto, que o matou a tiros. Como um fantasma do passado, o caso foi desenterrado há pouco mais de uma década e o criminoso confessou. Renner LeRoy Forbes, o assassino, já era estava então aposentado, tinha quase 70 anos e morava numa comunidade para velhos em outro estado, Kansas.

Um investigador do Colorado o encontrou ali, esquecido – e ouviu a confissão. O fato despertou interesse por reviver o conflito interno que dividia o país nos anos conturbados da guerra do Vietnã. Aquele choque entre a pequena Nederland, de 550 habitantes pacatos e acomodados, e o bando hippie acampado nas imediações depois de sair da escola, queimar papéis do serviço militar e viajar em caronas, retratava uma época.

O silêncio cúmplice da cidade

Nederland fica nas montanhas Rochosas. O hippie Guy Howard Goughnour tinha 19 anos. Era de família rica num subúrbio de Minneapolis, Minnesotta. Abandonara a escola secundária e a casa confortável para se juntar a outros hippies desencantados com o establishment e viajar sem rumo. “Acho que o mataram porque era hippie e nada significava para ninguém – a não ser para seus pais”, disse a mãe dele, Nancy Goughnour.

“Na época não nos explicaram nada”, contou ela. Na verdade, a própria Nederland fez questão de esquecer o crime. Não se explicavam mortes de hippies no país. A de Goughnour seria fácil de investigar. Estava então vivendo numa comunidade cuja existência irritava a cidade. O xerife o prendeu na noite de 17 de julho de 1971, depois de tumulto num bar, e o levou no carro-patrulha. O corpo foi encontrado a mais de 30 quilômetros da cidade, numa ribanceira.

O adjunto Forbes tinha então 42 anos. Fora criado numa fazenda do Kansas e viajara pelo mundo graças ao serviço militar na Força Aérea. Patriota no velho estilo, orgulhava-se do treinamento militar e odiava vagabundos e contestadores. Apesar de mais baixo do que Goughnour, era uma montanha de músculos. E pelo menos 45 quilos mais pesado do que o hippie.

“Solução é abater a tiros”

“Era um valentão. Parecia um touro. E se exibia”, contou ao New York Times, em 1987, Dave Gordon, dono do Pioneer Inn, bar frequentado à época pelos mineiros da redondeza – e pelos hippies. Gordon chamou a Polícia por causa de tumulto causado por Goughnour. Forbes trancafiou o hippie no carro-patrulha e depois avisou: “Se você voltar a essa cidade, vai se arrepender”.

Forbes disse posteriormente a outras pessoas que tinha levado Goughnour para fora da cidade e do condado. “Ele vai levar muito tempo para encontrar o caminho de volta”, garantiu. Outros policiais já tinham declarado, para quem quisesse ouvir, que a melhor maneira de livrar Nederland dos hippies era “abater esses bastardos a tiros e depois jogar os cadáveres montanha abaixo”.

Depois que o corpo de Goughnour foi descoberto, com duas perfurações de bala, a cidade inteira suspeitou de Forbes. Mas nem por isso a comunidade local fez qualquer pressão para o caso ser investigado. O laudo técnico foi inconclusivo e o xerife adjunto negou ter qualquer coisa a ver com o crime.

“Éramos apenas crianças”

A comunidade, na verdade, refletia o clima anti-hippie do país naquela época. Seis meses antes tinham acontecido os massacres do bando de Charles Manson em Los Angeles – quando foi morta, entre outras pessoas, a atriz de cinema Sharon Tate. Em Nederland muita gente achava que qualquer coisa era válida para livrar a área dos hippies, acusados de pedir esmolas e roubar.

Um dos companheiros hippies de Goughnour na época, Bruce Bohne, também foi encontrado, 26 anos depois, pelos jornais. Estava então com mais de 40 anos de idade e trabalhava como ator em Hollywood. Aos repórteres interessados no passado dele, deu sua versão: “De fato a gente costumava pedir dinheiro. Mas éramos só crianças tentando viver aventuras. Não fazíamos mal a ninguém”.

Valentão no passado, o ex-xerife adjunto já não passava de um velho inofensivo. Psicologicamente perturbado desde a morte da mulher, movimentava-se em cadeira de rodas, devido a derrame sofrido algum tempo antes. Terça-feira, 14 de outubro de 1987, ele se declarou culpado no tribunal. Arrependido, garantiu que se pudesse daria 10 anos de sua vida para que aquilo nunca tivesse acontecido.

Published in: on junho 13, 2008 at 3:24 pm  Deixe um comentário