Na página inteira dedicada ontem à rendição na Colômbia da guerrilheira Karina (ou Nelly Ávila Moreno), O Globo atribuiu a ela, no título, a morte em 1983 de Álvaro Uribe Sierra, pai do presidente Álvaro Uribe Vélez – acusação desmentida em declaração dela própria reproduzida sem destaque no corpo da matéria (que ainda omite a ligação de Uribe Sierra com os paramilitares e o narcotráfico).
Mas a ênfase do jornalão dos irmãos Marinho na prisão dela torna oportuno e sugestivo revisitar o papel dos paramilitares na vida colombiana nos últimos 25 anos – o que foi tema, há apenas 10 dias, de uma reportagem reveladora apresentada no “60 minutes”, a revista jornalística de maior audiência na TV americana, por Steve Kroft, correspondente da rede CBS (leia AQUI a transcrição da reportagem).
O assunto devia interessar mais à mídia brasileira, pois no centro do palco está a conspícua transnacional “bananera” Chiquita Brands, atual encarnação de nossa muito conhecida United Fruit. Corporação de má fama e péssimos hábitos, ela está na história da América Latina por se envolver, com a proteção do governo dos EUA, na vida política de vários países, patrocinando intervenções e golpes.
Financiando bandos paramilitares
Depois de ser United Fruit, ela foi United Brands e, em seguida, Chiquita Brands. A novidade agora é que reconheceu perante o Departamento de Justiça dos EUA que pagou a bandidos paramilitares – as AUC, Autodefensas Unidas da Colombia, milhões de dólares, a título de “proteção”. A confissão levou a Justiça de Bogotá a pedir a extradição de seus executivos para julgamento na Colômbia.
Segundo a reportagem do “60 minutes”, as extensas plantações de banana na região de Uraba são o meio de vida de grande população no norte do país. E desde a década de 1980 a área tornou-se campo de batalha. Primeiro, dos guerrilheiros das FARC, que matavam e seqüestravam. Depois, dos exércitos privados paramilitares criados a pretexto de combatê-los e hoje mais dedicados ao narcotráfico.
A Chiquita alegou ter ficado entre dois fogos, sem que o governo colombiano a socorresse. “Nessas terras não havia lei”, disse à CBS Fernando Aguirre, atual executivo-chefe (CEO). A empresa pagava “imposto” aos guerrilheiros, que controlaram o território no final da década de 1980 e início da de 1990; e de 1997 em diante aos paramilitares, que ameaçavam com represálias ainda piores.
“Os paramilitares tinham assassinado mas de 50 pessoas, empregados da companhia. Era óbvio para todos que não estavam brincando”, disse Aguirre. Se a empresa não pagasse, acrescentou, haveria mais assassinatos e seqüestros. Eram conhecidas as atrocidades das AUC, financiadas ainda por grandes proprietários de terra (como a família Uribe, que tinha 25 fazendas) e o narcotráfico (clique abaixo, no YouTube, para ver o perfil do presidente Uribe). .
A missão de recolher cadáveres
O objetivo era não apenas expulsar os guerrilheiros da área. Os paramilitares eliminavam qualquer um que tivesse a mais leve inclinação esquerdista, líderes sindicais e professores principalmente. Às vezes aldeias inteiras eram arrasadas, como testemunhou à CBS Gloria Cuartes, prefeita de Apartado. “Minha função, nesse cargo, parecia ser apenas a de recolher cadáveres”, contou.
Em 1996 ela viu um garoto de 12 anos ser assassinado na escola. “Eles cortaram a cabeça dele e jogaram em nós”, relatou Cuartes. “Fiquei em pânico. Eles permaneceram quatro horas na escola. Exibiam armas e faziam disparos, deixando todas as crianças em estado de choque”. O quadro só mudou, segundo Kroft, depois que os EUA passaram a considerar os paramilitares “organização terrorista”, tornando crime o financiamento deles.
Mas a Chiquita pagou “imposto” mais dois anos, até 2003, a pretexto de não ter sabido da decisão – publicada até no “Cincinatti Enquirer”, jornal da cidade de Ohio onde ela tem sua sede. Afinal a empresa foi aconselhada por seus advogados, ante processos iminentes de vítimas dos paramilitares, a sustar os pagamentos e confessar ao Departamento de Justiça dos EUA o que tinha feito. Finalmente, no ano passado, ela se declarou culpada pelo crime e concordou em pagar multa de US$ 25 milhões – o que não põe fim aos seus problemas jurídicos
Os lucros sangrentos da banana
Em quatro processos distintos, o advogado Terry Collingsworth exige na Justiça dos EUA indenizações para as famílias de uns 200 colombianos assassinados pelos paramilitares. Ele argumenta que o dinheiro pago durante sete anos pela Chiquita pode ter garantido a segurança de seus empregados, mas também ajudou a comprar armas e munição para os paramilitares assassinos matarem outras pessoas.
“Essa empresa tem sangue em suas mãos. É cúmplice de massacres. Se você dá dinheiro a alguém sabendo que depois ele vai matar pessoas, ou aterrorizar, ou torturar, você também é culpado”, afirmou Collingsworth. E como saberiam na empresa ser esse o caso? – perguntou Kroft. “Se não sabiam, eram os únicos em toda a Colômbia a ignorar a ação dos paramilitares”, respondeu o advogado.
O “60 minutes” ouviu ainda o ex-chefe paramilitar Salvatore Mancuso, que cumpre pena por narcotráfico em prisão de segurança máxima nas cercanias de Medellín. Ele negou que a Chiquita desconhecia a ação do grupo que financiava: “Ela pagava porque éramos como o estado na área. Dávamos a proteção que permitia a eles continuar operando. Eles faziam investimentos, tinham lucros. E pagavam voluntariamente” (veja abaixo, em dois videos do YouTube, estas e outras declarações contundentes de Mancuso, comprometendo a Chiquita, Uribe e a base parlamentar do governo colombiano ).