O legado da CIA no Irã, Afeganistão e Paquistão

A imagem do herói no cavalo branco a salvar a mocinha das garras do vilão, seja este assaltante de banco ou índio em defesa de suas terras invadidas, é recorrente na ficção de Hollywood. O deputado Charlie Wilson (o da foto acima, entre os radicais afegãos em 1987) morreu, aos 76 anos, no dia 10 de fevereiro, certo de que era herói na vida real (mais sobre ele AQUI). Motivo: no Congresso injetou bilhões de dólares para financiar os que lutavam contra os russos no Afeganistão.

Ao morrer do coração Wilson já estava aposentado. Mas ele representou o Texas por 14 mandatos sucessivos na Câmara. Um livro (Charlie Wilson’s War – The Extraordinary Story of the Largest Covert Operation in History, de George Crile) e um filme (Charlie Wilson’s War, de Mike Nichols, com Tom Hanks no papel-título) o retrataram como herói.

A semana marcou ainda o 31° aniversário da revolução dos aiatolás do Irã, ocorrida apenas alguns meses antes da invasão do Afeganistão. Os iranianos derrubaram o regime do xá Reza Pahlevi, instalado em 1953 graças a golpe planejado pela mesma CIA que usou as verbas secretas do deputado Wilson para recrutar e armar os radicais islâmicos do lado paquistanês da fronteira com o Afeganistão.

O mínimo que se pode dizer é que no Irã, Afeganistão e Paquistão os EUA colhem hoje o que a CIA plantou com a colaboração de gente como o deputado Wilson (na foto, exibindo uma arma em seu gabinete – e, ao lado, a capa do livro que celebrou a “guerra de Charlie Wilson”). Osama Bin Laden foi treinado pela CIA para atacar os russos; gostou e atacou depois o World Trade Center em Nova York. E as bombas atômicas do Paquistão (real) e do Irã (hipotética) devem-se, ao menos em parte, a igual cortesia da CIA.

Um quarto de século para os donos do petróleo

A lambança atual no Afeganistão (largamente nas mãos dos radicais islâmicos usados pela CIA a partir de 1979), no Paquistão (onde a CIA instalou acampamentos para os ataques aos russos no país vizinho e encorajou o sonho paquistanês da bomba nuclear islâmica) e no Irã (que se nega hoje a abandonar o enriquecimento de urânio) reflete o passado irresponsável da espionagem dos EUA.

No Irã o golpe da CIA instalou o xá (foto ao lado – e mais sobre a trajetória dele AQUI) no lugar do premier nacionalista Mohamed Mossadegh, anulou a nacionalização do petróleo e com faustosa coroação em 1967 impôs a ficção do “trono de 2.500 anos”. As corporações anglo-americanas ganharam mais um quarto de século para explorar o petróleo do Irã, já que para isso a CIA também concebeu a tenebrosa Savak, serviço secreto celebrizado pelas câmaras de tortura.

Ainda naquela década de 1950 o Irã foi premiado pelo governo do presidente Eisenhower com relações muito especiais – que incluiram “acordo de cooperação nuclear para fins pacíficos”, deixando o país com alguma base para, em seguida à revolução dos aiatolás, assustar os EUA com a disposição de ampliar o programa nuclear e rumar para o enriquecimento de urânio.

Para o Irã submisso de Reza Pahlevi, nada era bom demais: além de favorecer o desenvolvimento nuclear, Washington ainda dotou o país de armas sofisticadas e modernizou a máquina da repressão – tudo pago com a receita do petróleo, que regalou nos EUA as indústrias de armas, aeronáutica, nuclear e de segurança. Só que hoje, tomado pelos rebeldes radicalizados nas câmaras de tortura, o Irã é outro.

Helms & Pahlevi: a intimidade promíscua

De tal forma o Irã do xá era criatura da CIA que no final de 1973 o presidente Nixon concluiu que ninguém melhor para ser embaixador em Teerá do que o próprio diretor da central de espionagem, Richard Helms – “dada a intimidade dele com o xá”, explicou (veja-o ao lado na capa da revista Time em 1967). Como se fosse o posto final de uma carreira de sucesso na CIA, dirigida por Helms durante quase sete anos, antes dos três que passou no Irã.

Com a contribuição do deputado Charlie Wilson, anticomunista meio fanático, o capítulo Afeganistão-Paquistão foi ainda mais vivo, excitante e insólito – ou colorful, para usar adjetivo talvez mais apropriado à conduta do parlamentar, um playboy excêntrico que quando não estava “salvando o mundo” da “ameaça vermelha” dedicava-se ao consumo de álcool e drogas com prostitutas de luxo.

Ele ficou obviamente encantado com os relatos do livro e do filme (no cartaz, ao lado, o trio central: Wilson, a namorada e o homem da CIA) que o tornaram celebridade. Seu papel pode ter sido singular pelo conhecimento de sutilezas do processo legislativo na Câmara, onde integrava a comissão de verbas (appropriations) e sua subcomissão sobre operações no exterior – além de cultivar contatos na comissão que supervisiona a espionagem.

Não só estava familiarizado com mecanismos e artifícios para ocultar a destinação de recursos. Também revelara-se mestre na troca de favores com colegas interessados em abocanhar verbas para projetos de seus distritos eleitorais. Certos especialistas acham que hoje teria mais dificuldades: o processo legislativo sofreu reformas depois, reduzindo – em nome da transparência – a prática do sigilo (saiba mais AQUI).

Forçando a URSS a invadir o Afeganistão

O fato é que Wilson começou por canalizar uma verba de US$ 5 milhões para os radicais afegãos. E no fim da década de 1980 aqueles recursos elevavam-se a nada menos de US$ 750 milhões por ano. Pode ter sido ajudado por pertencer ao partido da oposição (democrata) numa década dominada por governos republicanos (Reagan e Bush I) obstinados em estender ainda mais as ações militares dos EUA pelo mundo.

No Afeganistão e Paquistão, sabe-se hoje, a lambança foi bipartidária – devido a armadilha do governo do presidente democrata Jimmy Carter. Seu assessor de segurança nacional na Casa Branca, Zbigniew Brzezinski (a foto ao lado é dos dois), confessaria 20 anos depois ter atraído a URSS para a idéia de invadir o Afeganistão. A invasão veio a 24 de dezembro de 1979, após seis meses de ajuda crescente da CIA aos rebeldes radicais.

Em entrevista à Nouvel Observateur de Paris em 1998 (leia AQUI), Brzezinski vangloriou-se de seu papel: “Carter assinou a 3 de julho de 1979 a primeira diretiva (à CIA) para a ajuda secreta aos opositores do regime pro-soviético de Kabul. Naquele dia eu tinha enviado nota ao presidente na qual expliquei que, na minha opinião, tal ajuda americana iria levar a uma intervenção militar soviética”.

Quando o jornalista perguntou se a ação clandestina dos EUA tivera a intenção de provocar a invasão russa, Brzezinski amenizou: “Não provocamos os russos para que invadissem, mas ampliamos conscientemente a probabilidade de que isso viesse a ocorrer”. No dia em que os russos cruzaram a fronteira, disse, escreveu de novo a Carter: “Agora temos a oportunidade de dar aos soviéticos o Vietnã deles”.

Brzezinski contestou, assim, a tese republicana que atribui a Reagan a glória pelo fim da URSS. “Durante quase 10 anos a URSS amargou guerra insuportável – um conflito que trouxe a desmoralização e, afinal, a dissolução do império soviético”, alegou. Mas o exagero é comparável ao do mérito republicano. O desfecho, após meio século, deveu-se aos dois partidos e muita gente mais – inclusive os que erraram tanto na URSS.

De “combatentes da liberdade” a “terroristas”

As avaliações atuais tentam ignorar os efeitos negativos das ações da espionagem. Ao financiar, treinar e armar (até com mísseis Stinger, capazes de destruir aviões em vôo) os radicais que batizou de “combatentes da liberdade” a CIA extremou as ambições deles. Hoje ela os repudia como “terroristas”, indiferente ao fato de que são os mesmos – e aprenderam o que sabem na CIA, em especial a pensar o impensável, como atacar o coração do império americano.

Com os russos fora do Afeganistão os EUA deixaram o país para os radicais que a CIA diplomou em terrorismo. Com armas como o Stinger, os talibãs tomaram o poder e ficaram até 2001 (hoje lutam contra tropas da OTAN). Bin Laden, saudita de nascimento, ainda dirige de lá a al-Qaeda, que opera no mundo a partir do território afegão. A CIA ainda tenta “recomprar” Stinger mas nem sabe quantos distribuiu – a estimativa vai de 500 a 2.000.

O deputado Wilson, ao invés de herói, foi cúmplice das trapalhadas. Livro e filme dizem que agia com assistência da CIA. A culpa dos EUA e sua agência ia mais longe na relação promíscua com o general-ditador paquistanês Zia-ul-Haq, que em troca do apoio à operação na fronteira afegã obteve luz verde e deu carta branca ao construtor da bomba atômica islâmica, o cientista Abdul Qadeer Khan.

No desdobramento, a receita da bomba-A do Paquistão (saiba mais sobre ela AQUI) foi parar no Irã, Coréia do Norte, Líbia e talvez outros. Assim, além de fazer a “guerra (sem fronteiras) ao terrorismo” e lutar no Afeganistão contra os que antes chamava de “combatentes da liberdade”, os EUA hoje têm de vigiar o Dr. Khan, o serviço secreto (ISI) do Paquistão, os progressos nucleares do Irã e da Coréia do Norte e sabe-se-lá-mais-o-que.

A própria CIA adotou a expressão blowback para designar os efeitos opostos ao que pretendia em cada uma de suas operações clandestinas. A palavra (usada no título do livro da capa ao lado, no qual Chalmers Johnson analisou os custos e consequências do império americano) apareceu pela primeira vez em relatório secreto de 1954 sobre o golpe da CIA no Irã (leia explicação do autor AQUI). O blowback da derrubada de Mossadegh foi a tirania de 25 anos e a revolução (antiamericana) dos aiatolás. Já em relação ao Afeganistão, os ataques do 11/9 nos EUA tendem a ficar na história como o efeito mais devastador.

(Clique abaixo para saber mais sobre o Irã desde o golpe de 1953)
Published in: on fevereiro 16, 2010 at 1:54 pm  Comments (10)  

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10 ComentáriosDeixe um comentário

  1. argemiro ferreira:
    eu já tinha lido esse seu artigo na página do nassif.
    essencial,é claro.
    vou estar te acompanhando.
    um abraço.
    romério

  2. Argemiro, só um detalhe. O filme com Tom Hanks é muito bom e o personagem não tem nada de heróico. Tem algo de anti-heroi, um pouco macunaímico e faz uma critica irônica até ridicularizando um pouco a política externa norte-americana. Em nenhum momento do filme Charlie Wilson é retratado como exemplo, e sim como um espertalhão que se aproveita de uma causa para ter uma bandeira. Um deputado do baixo clero inexpressivo, e ele mesmo se define assim, que conseguiu algo para defender. E termina de maneira ainda mais irônica com a frase. “Derrotamos o exército soviético, e no fim, estragamos tudo”.

  3. Causa e efeito

    Excelente texto, onde o leitor pode compreender com clareza os comflitos políticos e as guerras da atualidade nos países citados. Passado e presente, causa e efeito revelados. O império (USA) sempre presente e fazendo horrores.

    Argemiro, sei que você é um Mestre nesses assuntos, mas sempre fico impressionado, quando resume temas da história contemporânea com tanta habilidade. Os leitores mais jovens não terão qualquer dificuldade em compreender o assunto.

    Francisco Solano e Lima
    João Pessoa – PB

  4. Gostei bastante, Argemiro. Vi o filme e entendi que Charlie era um viciado, pedófilo e vaidoso. O seu texto (via Carta Maior) ajudou, e muito, minha compreensão. Julgo ou penso que USA é o câncer do planeta em estado terminal e Obama não dará solução. Abrs

  5. […] O legado da CIA no Irã, Afeganistão e Paquistão […]

  6. O xá do Irão não era nenhum fantoche e é por isso que a relação com os EUA começou a azedar. Começou a falar contra Israel, começou a dizer que o petróleo era demasiado precioso para se andar a queimar em carros, começou a dizer que o Mundo Árabe precisava de refinar o seu próprio petróleo, etc… Existem entrevistas e discursos dele no youtube que confirmam isto.
    Você comete o erro classico de julgar que a CIA tem poderes sobre-naturais e consegue manipular todo a belo prazer.
    Quanto a Bin Laden… batem muito nessa tecla. O Bin Laden era um entre muitos, ele só foi para o Afganistão quando a guerra já tinha começado. Era simplesmente um entre muitos. No final da Guerra os Mujahedinns dividiram-se entre os Talibã e a Aliança do Norte…
    Desculpa, Argemiro, mas quando usas filmes de Hollywood para tirares conclusões temos problemas… a mesma Hollywood que passou os anos 80 e 90 a criar as famosas personagens do “Árabe Terrorista Maluco”…
    Os EUA tornaram-se um monstro controlado por Cristãos-Sionistas e Judeus-Sionistas, mas não vamos “desculpar” o monstro Soviético…

    • Concordo com ele. A pessoa do xá sempre é mostrada de uma maneira muito maniqueista.

  7. “Ao financiar, treinar e armar (até com mísseis Stinger, capazes de destruir aviões em vôo) os radicais que batizou de “combatentes da liberdade” a CIA extremou as ambições deles.”
    Se me treinassem para expulsar invasores aqui neste lugar eu derrubaria até a estátua da liberdade.
    Primeiro adestram os Buldogues para a rinha e depois querem que estes digam “obrigado. Agora me tragam a coca-cola e o McDonald’s” .

  8. Boa noite. Sou estudante de relações internacionais e estou fazendo um trabalho sobre o Oriente Médio. Geografia do Oriente Médio. Será que voce poderia me ajudar? Por essa publicação sua, vê-se mesmo que entende bem dos conflitos. Obrigada pela atenção. Francine!

  9. oi argemiro boa noite tive a oportunidade de assistir hoje o documentário a verdadeira história de charlie wilson no canal history chanel,ele é tudo isso que está no seu texto e o mais interessante é a forma que ele começou a se envolver com política foi através da morte do seu cachorro ferido por um vizinho.parabéns pelo texto.


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