Um repórter que virou “insider”

Antes de Judith Miller, que se julgava repórter de investigação apenas porque se apresentava às autoridades para receber vazamentos manipulados do poder, houve James (“Scotty”) Reston. Ele morreu de câncer em 1995, aos 86 anos, após meio século de uma carreira durante a qual foi de repórter a diretor de redação (Managing Editor) do New York Times. Como ela, esteve próximo demais da cúpula do poder.

Transformado em mito, ele contou sua história num livro de memórias – Deadline, publicado 1992. E 10 anos depois John F. Stacks publicou sua biografia (saiba mais AQUI sobre ela). Para o colega R.W. Apple, o acesso aos governantes é que o tornou um grande jornalista de seu tempo. “Podia ir e falar com o presidente, o secretário de Estado, o da Defesa. Era recebido em Moscou pelo líder do Kremlin e em Paris pelo general De Gaulle. Além de recebê-lo, eles falavam com ele de igual para igual” (leia AQUI uma entrevista de Apple à rede pública PBS logo depois da morte dele).

Isso, obviamente, além da capacidade de Reston de entender os problemas que abordava, sintetizá-los em estilo simples e compreensível e apresentá-los num texto atraente, sem burocratês, diplomatês e outros complicadores. Numa entrevista, Apple foi perguntado como Reston conseguia aquele acesso. “Se soubesse, eu próprio também já o teria”, respondeu.

Sacrificando a independência

Já como diretor da sucursal de Washington, antes de assumir o mais alto posto da redação em Nova York, Reston era um dos jornalistas mais poderosos de sua geração – a geracao que acompanhou o drama da guerra fria e viu o mundo à beira de uma catástrofe nuclear que felizmente nunca aconteceu. Ele desempenhou papel relevante desde o inicio no chamado consenso da guerra fria.

No livro de memórias, Reston contou como contribuiu para a elaboração do célebre discurso no qual o senador republicano Arthur Vandenberg, em janeiro de 1945, renunciou ao isolacionismo para tornar-se um ator sensível em seguida ao lançamento da chamada doutrina Truman. Mas o ponto crucial do debate suscitado pelo livro em 1992 foi sobre o papel da mídia e dos jornalistas.

Até que ponto um profissional de mídia sacrifica a própria independência para entregar-se ao jogo de conveniências a fim de penetrar no centro do poder e impulsionar a própria carreira, numa relação mais ou menos promíscua com as fontes? Uma vez fiz referência à desconfiança manifestada por Joel Silveira -num de seus livros, Conspiração na madrugada – sobre a independência dos jornalistas que falam a qualquer hora com governantes e ditadores.

Nos EUA esse tipo de jornalista costuma ser chamado de insider. Para muita gente, inclusive estudiosos sérios dos meios de comunicação, é impossível ser, ao mesmo tempo, insider e independente. Uma coisa implica, inevitavelmente, no sacrifício da outra. “É uma contradição diabólica”, escreveu outro jornalista de Washington, Elias Vlanton, em bem fundamentada crítica às memórias de Reston (conheça também AQUI uma visão crítica da esquerda, de Edward S. Herman).

As manobras de bastidores

Não por acaso muitos jornalistas assim são cooptados pelo governo. No passado o próprio Times perdeu alguns para o Pentágono e o Departamento de Estado. Mas Reston preferia ficar na redação e ter linha direta com a Casa Branca. As memórias dele deixaram claro que pagou um preco para preservar essa situação – preço que expõe a ambiguidade de seu papel.

Ele contou, por exemplo, que muitos meses antes da derrubada do piloto Francis Gary Powers já sabia dos vôos clandestinos do avião-espião U-2 sobre a União Soviética. O incidente do U-2 em 1960 fez fracassar uma cúpula Eisenhower-Kruschev (conheça os detalhes do incidente AQUI, nos arquivos de Eisenhower). A história poderia ser diferente se Reston tivesse cumprido seu dever profissional e informado sobre aqueles vôos? Nesse e em outros casos, o insider prevaleceu sobre o jornalista.

Outros episódios recordados em Deadline, envolvendo situações parecidas, também são controvertidos, como destacou Vlanton. Será lícito, por exemplo, um jornalista “plantar” as próprias propostas? Certa vez a revista Time disse que Reston fazia exatamente isso. Às vezes tinha uma idéia, um certo plano, e arranjava uma fonte para dizer que aquilo estava em estudos no governo.

É surpreendente ainda que já no início de 1953 o poder de Reston lhe permitisse atuar como fez no caso dos documentos sigilosos da Conferência de Yalta. Depois de descobrir que cópias de minutas seriam liberadas a congressistas e temendo que fossem usadas pela Direita republicana (leia-se: Joe McCarthy) para acusar Franklin Roosevelt de ter entregue a Europa Oriental aos comunistas, recorreu a John Foster Dulles.

A verdade e a capitulação

O então secretário de Estado deixou-se convencer pelos argumentos de Reston, que achava aquela “liberação” extremamente perigosa. Assim, as 834 páginas foram parar, como vazamento, na própria redação do New York Times – não em nome do direito da população a ser informada e sim da conveniência política dos detentores do poder (e do jornal), temerosos de uma ofensiva da Direita republicana.

Outro grande pecado de Reston, talvez traição à integridade jornalística, pode ter sido sua conduta em abril de 1961. Buscou a todo custo impedir publicação do “furo” de Tad Szulc, repórter que descobrira na Flórida os preparativos para o ataque à baía dos Porcos, planejado pela CIA. Em Washington, o presidente Kennedy convencera Reston a não publicar a reportagem de Szulc.

Em Nova York, o editor executivo Clifton Daniel resistiu. Mas sob a pressão de Reston e Kennedy, o jornal – com o respaldo da alta cúpula – minimizou e descaracterizou o texto. Depois do fracasso da invasão, o próprio Kennedy reconheceria que se o Times tivesse cumprido seu dever de informar, o país seria poupado daquele desastre da política externa (veja AQUI como o jornal relatou o fato anos depois, no obituário de Szulc).

Reston também foi mais insider do que jornalista ao deixar de defender seu repórter Clayton Knowles, que cobria o Senado. Acusado pelo senador McCarthy de ter sido comunista 15 anos antes, Knowles foi transferido de Washington para Nova York. No livro Reston relatou o episódio como se tivesse “ajudado” Knowles, que passou o resto da vida em tarefas anódinas. Na verdade, fora outra rendição do insider.

Published in: on maio 28, 2008 at 2:01 pm  Deixe um comentário